Os primeiros minutos daquele 5 de maio de 1965 foram de pânico no Aeroporto da Pampulha. O avião da companhia Vasp, que havia saído com destino ao Rio de Janeiro pouco depois das 23h, sobrevoava em círculos a pista do terminal em Belo Horizonte, esvaziando os tanques de combustível para tentar aterrissar. A manobra, planejada pelo comandante William Becker em contato com a torre de comando, era extremamente arriscada.
O turboélice PP-SRL do modelo Viscount, um dos mais modernos da época, estava com um trinco na asa e com o trem de pouso danificado. O motivo era assustadoramente banal: o avião tinha atropelado uma vaca ao decolar. O animal, criado por Gercino José de Carvalho nas proximidades do aeroporto, invadira o campo de pouso no momento em que o Viscount alçava voo.
Os 22 passageiros e cinco tripulantes faziam orações. Becker tentou aterrissar pela primeira vez, mas sem sucesso. “Durante os últimos dois ou três minutos, quando se anunciou que o pouso seria tentado definitivamente pela segunda vez, os passageiros passaram a gritar em pânico”, noticiou o Diário da Tarde daquele mesmo dia. Sem o trem de pouso, o piloto temia que a asa se despedaçasse e o avião entrasse em parafuso. Mas tinha um plano. A tripulação se alocou na frente, pediu que os passageiros retirassem joias e outros objetos que poderiam causar ferimentos e os levou para a parte traseira da aeronave.
Desceu de novo, de “barriga” – e trombou com outro avião, da Varig, colocado na grama justamente para amortecer o pouso e escorar o aparelho da Vasp. “Só se ouviu um estrondo forte e um grande volume de poeira se levantou”, descreveu o DT. Na Pampulha, o Viscount da Vasp era esperado por duas ambulâncias, 150 militares – entre eles, 40 bombeiros, que correram para lançar espuma sobre o poço de querosene que se formou debaixo da aeronave acidentada. Tinha funcionado. A perícia do comandante Becker e do copiloto Guimarães salvara os viajantes. Ninguém teve um arranhão – com exceção da vaca e do próprio Viscount.
Não seria, porém, o único triunfo vivenciado pelo PP-SRL da Vasp. Pouco mais de um ano depois, a mesma aeronave traria de São Paulo à Pampulha um jovem escrete de Belo Horizonte que havia surpreendido o país ao derrotar um dos melhores times do mundo. Era o Cruzeiro, de Dirceu, Piazza e Tostão, campeão da Taça Brasil em cima do Santos de ninguém menos que Pelé.
O Arquivo EM traz essa história duplamente heroica. Mas, antes, é preciso que sejam dados os devidos créditos. O caso de hoje foi relembrado pelo leitor Maurício Luís Pinheiro Fontes, de 66 anos, que entrou em contato com a nossa reportagem para sugerir a matéria do Viscount, além de fornecer detalhes e, principalmente, a conexão até então inédita entre o acidente da vaca e o voo que trouxe o Cruzeiro campeão em 1966.
De posse das pistas de Maurício, fomos até o acervo de 96 anos de páginas impressas da Gerência de Documentação (Gedoc), do Estado de Minas, da revista O Cruzeiro e do Diário da Tarde, vespertino dos Diários Associados que circulou até 2007. O material do acervo é a base dessa série de reportagens especiais.
Vaca na Justiça
Mesmo que a trombada entre a vaca de Gercino José e o Viscount da Vasp tenha sido o primeiro incidente do tipo na Pampulha, os 42 militares responsáveis na época pela vigilância da pista do terminal lidavam com invasões constantes no local. “Proprietários de cavalos, bois, caprinos e até de cachorros e outros animais, sem atinar com as consequências do seu gosto, deixam os irracionais soltos, criando problemas sérios que podem redundar em consequências funestas”, informava o DT na matéria do acidente, acrescentando que o curral do terminal guardava, naquele momento, 13 animais, entre bovinos e cavalos, recolhidos das cercanias.
De acordo com a reportagem, os fios da cerca no entorno do aeroporto eram cortados clandestinamente à noite por indivíduos que circulavam no entorno e usavam o campo de pouso como passagem para eles e seus animais.
Dias depois, o argentino Ernesto Massa, técnico de resseguros da empresa inglesa Aircar afirmava, ao DT, entre “gostosas gargalhadas”, que caberia responsabilidade ao dono da vaca em questão pelo acidente, já que o animal “não poderia estar livre para evoluções na ‘cabeça da pista’”. Segundo Massa – um estudioso da arte barroca que havia passado aquele fim de semana em Ouro Preto – o Viscount estava segurado em meio bilhão de cruzeiros.
A afirmação acendeu um alerta em Gercino José, que resolveu se apresentar a Afrânio Aguiar, coronel da base aérea na Pampulha, como o proprietário do animal. Em reportagem assinada em 11 de maio no vespertino pelos jornalistas Felipe Drumond e Cordovil Otoni, o criador de animais e açougueiro, viúvo e pai de oito filhos, estava sobressaltado.
Para Gercino, “houve compensação de prejuízos, pois se o avião ficou avariado, ele por sua vez perdeu sua vaca”, escreveram os repórteres do Diário da Tarde. O açougueiro de Venda Nova incluiu, no depoimento ao oficial da base aérea, que, apesar do prejuízo que vitimou sua rés, estava feliz pelo desfecho. “Se estivesse com ele na noite do acidente, teria dado um boi como recompensa, pois o piloto mostrou-se mesmo um perito”.
Companhia aérea e açougueiro, no entanto, eram vítimas indiretas do mesmo problema de roubos de cerca, salientou: “Cachorro entra na Igreja porque acha a porta aberta”. Disse que não ia acionar a Justiça para exigir indenização pela perda da vaca – pedia apenas que o coronel liberasse os animais dele que estavam apreendidos (13 novilhos e quatro vacas), jurando que o problema não se repetiria.
Duas semanas depois, Gercino quebrou a promessa. “Açougueiro quer indenização pela morte da vaca que provocou acidente com Viscount”, estampava a edição de 25 de maio de 1965 do Diário da Tarde. Em petição assinada pelo advogado Waldemar Pimenta, o açougueiro acionava em 450 mil cruzeiros o comandante da base aérea da Pampulha pedindo reintegração de posse e indenização pela perda da vaca.
“O gado perambula por todas as imediações do local, onde quer que se encontre aberto e sem cerca própria à vedação da entrada de animais. Um dos logradouros mais frequentados pelos animais é o majestoso e verdejante aeroporto da Pampulha, pelo oferecimento de ótima pastagem e por estar por inteiro escancarado à visitação do público irracional”, escreveu o doutor Pimenta, ressaltando que o acidente tinha vitimado “a melhor vaca leiteira” de Gercino.
Mas, no dia seguinte, o jornal trouxe uma trágica revelação. “Soldados da Base Aérea fuzilaram gados no Aeroporto da Pampulha”, afirmava, em título autoexplicativo. De acordo com a reportagem, Gercino pedira também ressarcimento por três bois, que teriam sido mortos pelos militares quando tentavam fugir no momento da transferência entre base aérea e curral municipal de BH.
O açougueiro, pelo menos, conseguiu recuperar os animais sobreviventes e levá-los à sua propriedade, não sem antes constatar que alguns estavam com os pés quebrados, dizia. A ação pedindo indenização, agora inflada para 3 milhões de cruzeiros, também instava a Associação Protetora dos Animais a protestar contra o “selvagem ato das praças que teriam fuzilado as vacas rebeldes que procuraram escapar do caminhão”.
Taça no Viscount
O Arquivo EM não encontrou mais informações sobre o desdobramento da batalha judicial em torno dos bois. O que se sabe, de acordo com o testemunho do leitor Maurício Fontes, é que o Viscount PP-SRL, o mesmo que bateu na vaca, ficou alguns meses em conserto na Pampulha. “Aos domingos, eu ia ver aviões no aeroporto e o PP-SRL estava em manutenção fora do hangar da Líder. Eu o via do pátio gradeado bem ao lado”, contou o engenheiro, que vive em Belo Horizonte.
Um ano e sete meses depois do acidente, em 7 de dezembro de 1966, a jovem equipe do Cruzeiro surpreendeu todo o país ao vencer, de virada, o Santos de Pelé na final da Taça Brasil em São Paulo, sob forte chuva e em um Estádio Pacaembú cheio de lama e poças d’água. Os mineiros, liderados pelo capitão Piazza, tinham batido os então pentacampeões da competição, cujo plantel também contava com Carlos Alberto, Gilmar, Zito e Pepe, pelo espantoso placar de 6 a 2 no primeiro jogo – com três gols de Dirceu Lopes, um de Tostão e outro de Natal. Na volta, a Raposa precisava novamente de um triunfo para evitar um terceiro jogo, ou seja, a goleada não serviria de muita coisa em caso de derrota.
E o primeiro tempo terminou com um 2 a 0 para os paulistas, com gols de Pelé e Toninho Guerreiro. Mas, no segundo tempo, veio outro milagre. Tostão, à época com 19 anos; Dirceu Lopes, com 20; e Natal, com 21, viraram o jogo. O Cruzeiro quebrava a hegemonia do Santos, levando o primeiro título de campeão brasileiro do clube.
No dia seguinte, 8 de dezembro de 1966, um avião turboélice do modelo Viscount, da companhia aérea Vasp, aterrissou às 19h45 – meia-hora de atraso, segundo o DT – no Aeroporto da Pampulha, trazendo a delegação celeste, para o delírio do público de 10 mil pessoas, entre eles o nosso leitor Maurício Fontes. “Wilson Piazza, o capitão do time, foi o primeiro a descer do avião, carregando a Taça Brasil, sob os aplausos de muita gente que rompeu os cordões de isolamento e rodearam o aparelho da Vasp”, afirmava a reportagem. O time seguiu em cortejo, num carro do Corpo de Bombeiros, pela cidade.
O Arquivo EM procurou as fotos daquela noite, acionando inclusive o acervo do Cruzeiro Esporte Clube. No entanto, a única que mostra parte da aeronave faz parte da documentação de outro Cruzeiro, a revista semanal dos Diários Associados que circulou até 1975. Na edição de 24 de dezembro de 1966, o semanário publicou uma matéria com a chegada dos campeões em BH. Na imagem em questão, Piazza levanta a taça na saída da aeronave, acompanhado por dois tripulantes.
Na porta entreaberta é possível ler a marca “Vasp”. Vários jornais também citam que a delegação veio em um Viscount – mas não é possível confirmar o código PP-SRL. Maurício, porém, tem certeza que se trata do mesmo aparelho. “Quando o Cruzeiro chegou, eu disse ao meu pai: ‘é o avião da vaca recuperado’”, lembra ele.
De acordo com informações do blog “Cultura Aeronáutica”, o PP-SRL da Vasp voou um total de seis anos, até 31 de julho de 1969, quando foi desativado no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Naquele ano, foi doado ao Museu Eduardo André Matarazzo, em Bebedouro/SP, mas acabou sendo transferido para a Fazenda Matarazzo, no mesmo município, onde segue “intacto e em razoáveis condições de conservação”. Já a Viação Aérea São Paulo (Vasp) deixou de operar em 2005 e teve falência decretada pela Justiça três anos depois.