
A decisão da Anvisa em obrigar a retenção de receitas médicas para a venda de canetas emagrecedoras é comemorada por médicos consultados por VivaBem.
No dia 16 de abril, a agência reguladora decidiu que os pacientes só vão poder adquirir os produtos com as duas vias da receita —sendo uma delas para ficar retida na farmácia. Usados indiscriminadamente para emagrecer, os remédios têm indicação médica para diabetes tipo 2 e obesidade.
O que muda na prática?
Ozempic, Mounjaro (que em breve estará disponível nas farmácias), Saxenda e Wegovy só podiam ser vendidos com receita “comum”. Bastava ir na farmácia para comprar as medicações, que sempre foi tarja vermelha. Agora, será necessário levar as duas vias da receita, o que já acontece com antibióticos e antidepressivos, por exemplo.
No entanto, médicos afirmam que dificilmente a receita era exigida no momento da compra. “Era só você chegar na farmácia, sem receita, e comprar. Era uma coisa totalmente caótica e desorganizada”, diz Fábio Moura, endocrinologista e diretor da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia).
Canetas são amplamente utilizadas no tratamento de diabetes tipo 2 e obesidade. Ozempic e Wegovy são análogos de GLP-1, hormônio que atua no controle do apetite, no metabolismo da glicose e na regulação do peso corporal. Originalmente aprovados para tratar diabetes tipo 2, esses medicamentos também se mostraram eficazes na redução significativa de peso em pessoas com obesidade. Além disso, estudos recentes indicam benefícios adicionais, como a proteção contra doenças cardiovasculares e renais, aumentando ainda mais a procura por esses tratamentos.
Uso “off label” (sem orientação na bula) segue autorizado. A medida não altera o direito do profissional médico de prescrever medicamentos para finalidades diferentes das descritas na bula. Essa prática, conhecida como uso “off label”, acontece quando o médico entende que, para determinado paciente, os benefícios do tratamento superam os riscos. É uma decisão tomada com responsabilidade pelo médico e sempre com o devido esclarecimento ao paciente, garantindo que ele esteja bem-informado sobre o procedimento.
Menos automedicação e mais controle
Agora, o que os especialistas esperam é mais controle e a diminuição do uso descontrolado dos remédios. “Para nós, médicos, a decisão resolve uma dor muito grande, que é da automedicação. O grande problema aqui no Brasil é que, como não precisava, em tese, da apresentação da receita, as pessoas basicamente entravam nas farmácias e compravam. Isso fomentou o uso irregular da medicação, ou seja, o uso sem o acompanhamento médico”, explica Andressa Heimbecher, endocrinologista e metabologista, membro da SBEM.
“A gente imagina que isso irá reduzir o uso indiscriminado. Já vimos isso acontecendo com os antibióticos, que diminuiu o uso indiscriminado deles. Para venda ilegal, a gente sabe que no Brasil há um jeito para tudo.” – Andressa Heimbecher, endocrinologista
Aliás, a médica recebeu críticas no Instagram quando comemorou a decisão. “Uma pessoa disse: ‘Mas eu já pago caro para ter o produto e agora preciso de receita?’. Isso deveria ser o básico, ter acompanhamento médico para usar um remédio”, diz Heimbecher.
Falta de remédios
Decisão pode evitar que os remédios fiquem em falta para quem precisa. Tarissa Petry, endocrinologista do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP), diz que, em muitas situações, há pacientes que necessitam das medicações, mas não encontram. Para ela, a decisão da Anvisa pode reduzir situações como essa.
“Tenho pacientes com diabetes que precisei trocar a medicação por não encontrar a que ele costumava tomar. Isso acabou prejudicando o tratamento dele e de outras pessoas que realmente precisam do remédio.” – Tarissa Petry, endocrinologista
Médicos citam ainda a questão dos efeitos adversos dos remédios. Com muitas pessoas usando, sem acompanhamento médico, os remédios, sobretudo Ozempic, há uma preocupação dos especialistas com os efeitos no organismo.
Por melhor que essas medicações sejam, elas têm contraindicações e podem causar efeito colateral. Isso já estava ocorrendo de maneira inadequada, inclusive com médicos passando receitas de manipulação. Virou um comércio paralelo.
Especialistas criticam o uso para fins estéticos. Não se pode usar medicações para finalidade estética, explica Moura. “Obesidade é uma doença crônica, grave e complexa, com potencial de se associar a outras doenças. Não podemos permitir o uso dos remédios desta maneira irresponsável”, fala.
Decisão da Anvisa reforça importância do debate. “O grande ganho é falar de obesidade como uma doença crônica. É falar que há uma diferença entre o emagrecimento por estética e perder o peso por necessidade da doença. Então, temos de levantar essa discussão aqui no Brasil”, diz Heimbecher.
“Espero que essa discussão se estenda para o uso de medicação manipulada e contrabandeada, mas também não podemos deixar de comemorar esta decisão da Anvisa, que vai fazer muito bem para as pessoas.” – Tarissa Petry, endocrinologista
O que dizem as sociedades médicas e farmacêuticas
Proposta teve apoio de sociedades médicas. Elas destacam a importância de regulamentar o uso, preservando o acesso dos pacientes que dependem desses medicamentos para tratar doenças crônicas graves. Segundo a OMS, deve-se abordar a obesidade como uma doença crônica e tratada de forma criteriosa e personalizada.
Interfarma diz que decisão não “enfrenta a causa da raiz do problema”. “A retenção de receitas, por si só, não resolverá o crescente mercado paralelo de manipulação dos análogos de GLP-1. Este mercado vem realizando a importação e manipulação em escala industrial de princípios ativos sem qualquer garantia de qualidade, segurança ou eficácia —muitas vezes promovidas com fins estéticos, por meio de campanhas publicitárias irregulares e direcionadas ao público leigo”, diz a nota da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa.
Interfarma reforça que o foco deve ser o combate efetivo ao mercado irregular de medicamentos, com fortalecimento da fiscalização, controle de fronteiras, garantia da rastreabilidade de insumos farmacêuticos ativos e proibição integral da manipulação de análogos de GLP-1 —como já ocorre na Austrália e África do Sul, e com sérias restrições nos Estados Unidos. Apenas com uma atuação coordenada e rigorosa será possível proteger, de fato, a saúde da população.
Nota da Interfarma
Em dezembro, a Abeso divulgou uma nota demonstrando preocupação com a situação. No texto, eles reforçam que os medicamentos necessitam de acompanhamento médico. “A compra irregular para automedicação coloca em risco a saúde das pessoas, sem contar que pode dificultar o acesso de quem realmente precisa de tratamento. Por isso, como declaramos no documento, apoiamos a retenção da receita como medida para o uso racional e seguro desses análogos de GLP-1. Também consideramos fundamental que a Anvisa defina prazos adequados para a validade da prescrição.”
Eli Lilly, fabricante do Mounjaro, disse que a medida busca controle. No entanto, não responde a outro grande vetor de risco à segurança dos pacientes: o crescimento do mercado paralelo de análogos de GLP-1 manipulados em escala industrial, “que potencialmente poderá ter uma procura ainda maior a partir dessa decisão. Sendo assim, a Lilly acredita que as medidas contra a manipulação irregular, em escala industrial, precisam ser adotadas simultaneamente às ações de retenção de receita.”
Novo Nordisk, fabricante de Ozempic e Wegovy, recebeu a decisão “com naturalidade”. “A empresa compartilha das mesmas preocupações da Anvisa quanto ao uso irregular de medicamentos e fora de indicação em bula, e reforça que a segurança do paciente é seu principal compromisso.”
O que aconteceu
Decisão foi tomada a partir de dados de vigilância. Dados de notificação no Vigimed mostraram que, numa análise comparativa, foram muito mais eventos adversos relacionados ao uso fora das indicações aprovadas pela Anvisa no Brasil do que os dados globais.
Estamos falando de medicamentos novos, cujo perfil de segurança a longo prazo ainda não é totalmente conhecido. Por isso, é fundamental o monitoramento e a vigilância. O uso sem avaliação, prescrição e acompanhamento por profissionais habilitados, de acordo com as indicações autorizadas, pode aumentar os riscos e os potenciais danos à saúde.
Medida foi tomada durante reunião da diretoria colegiada do órgão. Por unanimidade, a agência entendeu que a retenção é necessária para aumentar o controle do uso desses medicamentos e proteger a saúde coletiva do “consumo irracional” dos emagrecedores.
Decisão entrará em vigor 60 dias após a publicação no Diário Oficial da União. As farmácias deverão incluir a escrituração da movimentação de compra e venda dos medicamentos industrializados e manipulados no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados.