
O influenciador Arthur O Urso revelou recentemente que foi traído. Seria um anúncio banal se ele não fosse defensor público do poliamor. Os seguidores ficaram em dúvida: se ele e a companheira eram livres para se relacionar com outras pessoas, como pode ter havido uma traição?
A ideia de traição entre casais está muito ligada a relacionamentos extraconjugais em relações monogâmicas. Mas é menos claro que é traição – ou não – no caso de um criador de conteúdo que ficou conhecido por fundar a “Mansão do Amor Livre”.
Artur não quis dar detalhes da traição e da separação, mas explicou os motivos básicos de sua decisão:
“Vivi uma longa história no formato de relacionamento poliamoroso. Foi uma grande experiência, mas na mesma proporção tive uma enorme traição”, disse o influenciador. “Todos os protocolos e limites foram ignorados”, contou. “O problema não está no modelo do relacionamento mas sim na pessoa com quem você se envolve”, comentou.
Para entender melhor, é preciso ir além do caso de Arthur Urso e esclarecer o que é poliamor.
Poliamor
“É um modo de vida que defende a prática de estar envolvido com várias pessoas — uma das formas de não monogamia, que abrange várias coisas, como relações abertas, amor a três, o poliamor. Enquanto a monogamia é quando as pessoas se fecham naquela relação”, diz Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora.
Segundo a psicanalista, a percepção atual de traição tem a ver com a ideia do amor romântico, que surge, mais ou menos, na metade do século 20, quando os casamentos passam a ser centralizados no amor. Antes disso, se casar era como realizar um acordo familiar.
“O amor romântico prega que os dois vão se transformar num só, o que gera muito sofrimento, quando diz que quem ama de verdade nunca tem olhos para mais ninguém. Quando uma pessoa descobre que seu amado ou amada transou com alguém, sofre muito acreditando que não é amado”, diz.
Para Regina, esse modo de “amar” está dando lugar às outras configurações como o poliamor.
“Como é algo muito novo, ninguém tem parâmetros para se apoiar, a gente vai precisar de um tempo para poder ver como fica”, diz.
Acordos
Então, baseando-se na configuração que conhecemos, as pessoas que partem para a não monogamia, geralmente, fazem acordos como:
- não poder se relacionar com alguém da cidade,
- vetar conhecidos ou amigos do companheiro (a)
- ou não pode repetir a pessoa.
“O que acontece é que, quando uma das partes descobre que o outro não cumpriu os combinados, se sente profundamente traído”, comenta Regina.
A psicanalista, no entanto, diz achar a palavra “traição” inadequada.
“Traição é uma coisa muito séria, pejorativa, pesada. Penso que nunca vamos ter um debate isento entre a monogamia e não monogamia usando a palavra traição”, aponta. “Não considero que exista traição na área das relações amorosas e sexuais. As pessoas se sentem assim porque ainda estão trazendo, mesmo para não monogamia, resquícios das exigências da monogamia”, defende.
Quem viveu a experiência
A multiartista baiana Lola* comenta que a sua visão de traição em um relacionamento poliamoroso mudou à medida que sua visão sobre afetos foi amadurecendo. “Bem no comecinho da minha trajetória enquanto não monogâmica, me senti traída”, disse. “Senti que atravessaram um limite meu, mas eu acho que, principalmente, porque eu não sabia o que era limite para mim ainda.”
Um dos pontos de virada foi o autoconhecimento. “Eu não tinha consciência do processo, estava querendo viver, mas não me conhecia o suficiente. Se acontecesse o mesmo hoje em dia, seria super natural”, continuou.
A experiência de Lola mostra que a melhor forma de evitar a sensação de estar sendo traído é a conversa. Ela diz que, em vários momentos, o “afeto” com quem ela estava saindo encontrava outros e os tratava como aquilo que eles eram: “afetos”.
🔍 Afeto é a palavra utilizada por pessoas não monogâmicas para designar aquelas com quem compartilham sentimentos de amor, carinho e cuidado.
“É muito importante o diálogo com as pessoas que me relaciono. A gente tem liberdade, cada um vive o que quer, mas é importante conversar”, diz Lola.
“Não tenho que falar se eu estou saindo com alguém ou vivendo outra experiência. Para evitar mágoa e confusão, [o segredo] é ser sincero sobre as coisas que eu estou sentindo e não depositar minhas frustrações no outro”, pontua.
Quebra de acordo, não da exclusividade
A influenciadora Jamile Santana, que usa as redes sociais para falar sobre não monogamia, diz que entende por traição em relações não monogâmicas como uma quebra de acordo, mas não da exclusividade afetivo-sexual, já que isso é uma “regra” para relações monogâmicas.
“Eu não tenho acordo de exclusividade, então, traição não necessariamente está ligada a questões afetivo-sexuais. Traição com a pessoa que eu transo, por exemplo, pode ser o mesmo motivo que, sei lá, um irmão meu me traiu, passou a perna, comeu o meu doce que eu guardei na geladeira”, diz.
Regina aponta para outra solução. “Essa questão de lealdade e confiança a gente tem que desvincular totalmente da palavra traição. Traição é roubar um sócio, roubar seu irmão na herança. E esses conceitos de lealdade e confiança também se transformam. A gente está caminhando”, opina.
Fácil ‘meter os pés pelas mãos’ no poliamor
“Eu acho que o segredo está em tudo passar por muita conversa e alinhamento, respeitando a individualidade de cada um”, comenta Lola. “Se conhecer é muito fundamental, entender os próprios processos para não depositar demandas que são nossas no outro”, continua.
É o que também acredita Jamile, que defende o cuidado nas relações. “São muitas as formas aqui de meter os pés pelas mãos. Mas quando existe cuidado de todas as partes é mais fácil a pessoa se sentir segura para continuar numa relação”, finaliza.