
Embora o cinema tenha chegado à Paraíba no final do século XIX, a primeira sala de exibição só inauguraram em Picuí muito mais tarde com o singelo nome de Cine Guarany. Esse cinema marcou para sempre as melhores lembranças de muitos conterrâneos. Porém, o Cine Guarany só ganhou fama quando Odilon Hortins adquiriu e o transformou. Ele construiu uma das melhores salas de exibição do interior paraibano, causando uma revolução na vida social e no lazer dos picuienses.
Chega do cinema
Quando o cinema chegava a uma cidade, trazia junto animação e uma inevitável mudança dos costumes. Era inspirada nas imagens que mostravam as novidades da moda e os hábitos mundo afora, evocados pelos artistas. Em nossa terra, a mudança mais vistosa consistiu na formação de um movimentado passeio na Rua 24 de Novembro, entre a Casa Vidal e o cinema. Todos “desfilavam” com suas melhores roupas, perfumados como se fosse uma festa. Curtindo as músicas do momento que saíam do som potente da difusora. Quantas paqueras e namoros não se iniciaram durante aqueles preciosos minutos? Todos se encontravam inevitavelmente num frenético ir e vir. Esse passeio animado e elegante durava até que a última música ecoava na difusora. Diferente das outras, essa música era instrumental. Era um aviso delicado de que o filme estava prestes a começar.
Então todos se dirigiam à bilheteria para comprar seus ingressos. Sempre se formava uma fila cujo tamanho dependia da fama do filme. Na bilheteria estava seu Odilon com seus cabelos brancos e sua inesquecível maleta do lado. Na portaria, era comum encontrar o amigo Gerson da Cagepa, severíssimo quando a sessão tinha limite de idade. Outro obstáculo era a marcação cerrada do fiscal de menores, Luiz Costa, que muitas vezes interrompia as sessões na busca de menores infiltrados nos filmes impróprios para suas idades. Ele era tão antipatizado pela molecada que lhe apelidaram de Luiz ‘Karaôi’.
Confeitos e pipocas
Uma vez transpostas todas as barreiras, víamos com alívio o rosto benevolente de dona Likinha. Ela vendia confeitos, pipocas e outras guloseimas no seu sortido fiteiro. Na sala de exibição, sempre Aldomário com um ajudante manejavam os projetores. Eles passavam fitas muitas vezes bem antigas, que se partiam com frequência, interrompendo o filme e gerando vaias ensurdecedoras. Até que, como um passe de mágica, se emendava a fita, as vozes se calavam e o filme prosseguia.
Tendo o Cine Guarany feito tanto sucesso, logo surgiram os loucos por cinema, conhecidos por “cinéfilos”, o que bem poderia abranger todos os frequentadores. Contudo, três destes fãs do cinema merecem destaque. O primeiro foi o pioneiro Ivan Cineminha, um dos mais famosos cinéfilos do Brasil e do mundo. A trajetória dele se descreve em vários documentários e imagens espalhados pelo Youtube, mostrando o quanto a sétima arte mexeu na cultura picuiense desde o seu início.
Outro digno de nota é o Adriano Vidal. Ele, de tanto ir ao cinema, passou a considerá-lo uma extensão de sua casa. Chegava a adormecer e ser esquecido por entre as cadeiras, até que despertou de madrugada aos prantos, enquanto sua família aflita o procurava pela cidade toda.
Já o humorista Rossini Macedo, era tão apaixonado pelo lugar que, tendo o pai negado o dinheiro para todas as sessões, chegava a vestir a camisa do amigo (que já tinha entrado) para entrar de graça. Ele também vendia pipocas de maneira improvisada para arrecadar os recursos de que precisava. Rossini considerava o Cine Guarany fundamental na sua vitoriosa carreira de humorista. Ele teve bastante inspiração nos filmes de Mazzaropi, de Charles Chaplin e dos Trapalhões.
Quase quatro décadas
Como o Cine Guarany durou quase quarenta anos, houve diferenças geracionais com relação aos hábitos e aos tipos de filmes. Nas décadas de cinquenta e sessenta, chegavam aqui os velhos clássicos de Hollywood. Nos anos setenta e oitenta, o público gostava de Tarzan, dos Trapalhões, Mazzaropi, dos faroestes e filmes de ação em geral. Quando passava “Coração de Luto”, “Dio como ti amo”, “Tarzan” ou “Paixão de Cristo”, a fila sempre dobrava a esquina e ia longe. Vale ressaltar que o Cine Guarany era também um teatro. Tornou-se palco de grandes eventos, como formaturas, apresentações de bandas e artistas apreciados na época. Entre eles estavam Marinês e Sua Gente, Ogírio Cavalcanti, e Almir Rogério (o intérprete de Fuscão Preto), além de tantos outros guardados na memória de quem viveu no tempo daquelas noites belas e animadas.
O advento da televisão e do videocassete em Picuí provocou o desinteresse pelo Cine Guarany. Esse desinteresse terminou agravado pela terrível crise econômica dos anos 80 e 90, que fez diminuir o público. Influiu também a lei que criava cotas para o cinema nacional. Se Os Trapalhões faziam sempre sucesso, não acontecia com a maioria dos filmes brasileiros exibidos. Para burlar esta lei, os filmes pornôs começaram a passar com frequência. Esse aspecto tornou melancólico o fim de quase todos os cinemas do interior brasileiro. Em 1975, o Brasil inteiro tinha 3.200 salas de cinemas. Esse número se reduziu para 1.400 em 1985. Mas o Cine Guarany só fechou suas portas no início dos anos noventa. Resistiu o quanto pôde, fato que comprova o gosto dos picuienses pela sétima arte.
Melhor diversão de Picuí
O cinema foi outrora a melhor diversão do mundo em Picuí e sua existência foi marcante por muito tempo. Trouxe novos hábitos e aproximou as pessoas. Ir ao cinema era muito mais do que ver um filme: era um espaço de interação de todas as classes sociais irmanadas pelo amor à diversão e à arte. O grande escritor argentino, Jorge Luiz Borges, disse que “a vida está feita da mesma matéria dos sonhos”. Bem que ele poderia ter dito que a vida também é feita da mesma matéria dos filmes.
Filmes são sonhos gravados numa fita, um sonho real que pode provocar o riso e o choro. E parece que o Cine Guarany foi como um sonho. Muitos dos que o frequentaram parecem ter esquecido que ele um dia existiu. Tanto que seu Odilon faleceu sem que ninguém lembrasse de homenageá-lo pela grande contribuição cultural e lúdica que nos proporcionou por muito tempo. Quando o Cine Guarany foi um dos nossos melhores programas de lazer, coincidiu com a época em que os picuienses eram mais simples, suas necessidades eram menos complicadas e certamente éramos mais felizes.
Álisson Pinheiro
Que linda homenagem , Meu Conterrâneo. Parabéns pelo resgate e destaque a setima arte.
Assisti muito filme dos Trapalhões no Cine Guarany! Era uma diversão que não tinha preço!
Muito linda essa Homenagem.Parabéns Álisson, o cine Guarani marcou a vida de muitos Picuenses!
Meu conterrâneo Alisson Pinheiro, descreveu de maneira exemplar a história desse ícone histórico de Picuí, enquanto lia revive os bons tempos do Cine Guarany.