
Sepultarão o papa Francisco, que morreu no último dia 21, no próximo sábado, 26 de abril, finalizando seis dias de ritos funerários. A tradição manda que o corpo de um pontífice permaneça exposto por um longo período no Vaticano, para que fiéis possam prestar as últimas homenagens.
Para isso, deve-se manter o corpo conservado por uma equipe de médicos e profissionais da tanatopraxia — mas nem sempre a Igreja obteve sucesso no processo.
Um dos casos mais conhecidos da história recente é o do papa Pio XII (1876-1958), famoso por ter permanecido à frente da Igreja durante a Segunda Guerra Mundial, bem como por suas relações com o Terceiro Reich e o fascismo, debatidas até hoje por historiadores.
Naquela época, porém, o “papa Pacelli” (seu sobrenome), como era conhecido na Itália, detinha muita popularidade, especialmente na capital italiana, onde havia nascido. Esperavam uma multidão jamais vista para seu cortejo fúnebre.
Oftalmologista
Pio XII morreu em um dia 9 de outubro, aos 82 anos, num início de outono ainda bem quente em Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas localizada nos arredores de Roma, de parada cardiaca, depois de três dias de uma súbita deterioração de saúde.
Além disso, ao seu lado, estava o médico Riccardo Galeazzi-Lisi, um oftalmologista originário de uma influente família em Roma que ascendeu ao posto de “arquiatra pontifício”, chefe da equipe médica do Vaticano.
Galeazzi-Lisi foi pivô de mais de um escândalo na época: nos dias anteriores à morte se Pio XII, o médico tirou fotos do papa recebendo oxigênio suplementar, vendidas à revista francesa “Paris Match”.
Conservação ‘à moda antiga’
Alguns anos antes, porém, Galeazzi-Lisi havia convencido o papa, quando morresse, a utilizar uma técnica que ele mesmo afirmava ter desenvolvido para preservar corpos. Até 1914, era comum os corpos dos pontífices terem os órgãos retirados para preservação em recipientes separados, mas a prática foi encerrada por Pio X. Pio XII havia deixado então em testamento a vontade de ser enterrado “da forma que Deus havia lhe feito”.
Coube a Galeazzi-Risi explicar à imprensa o seu método “revolucionário”.
“O médico, professor Riccardo Galeazzi-Lisi, descreveu o processo usado como o de ‘osmose aromática'”, diz um artigo da época no jornal “The New York Times”. “O método consistiu em permitir ao corpo do papa absorver resinas voláteis e certos óleos e outras substâncias com ação desoxidante.”
O médico do Vaticano conversou com jornalistas ao lado de seu colega Oreste Nuzzi, um médico napolitano creditado como cocriador do processo. “O método era uma redescoberta do utilizado não apenas pelos primeiros cristãos, mas também ao longo dos tempos”.
Consequência
“Os dois médicos disseram que uma das vantagens do método era que o corpo não precisava ser desnudado”, diz o jornal. “Eles dizem que não desnudaram o papa após sua morte embora suas vestimentas tenham sido trocadas.”
A verdade viria à tona depois: Galeazzi-Lisi envolveu o corpo de Pio XII em óleos e ervas e recobriu tudo com uma camada de celofane. Logo na primeira madrugada, porém, na Sala dos Suíços do palácio de Castel Gandolfo, sob o calor do início de outono no Hemisfério Norte, os presentes perceberam que algo havia saído errado.
“Uma sucessão furiosa de fenômenos cadavéricos transformadores começou: é a decomposição ao vivo diante dos olhos horrorizados dos espectadores, após o aberrante ‘embalsamamento’ patenteado e praticado pelo arquiatra”, conta o pesquisador Antonio Margheriti, autor de um livro sobre funerais papais.
Inchaço e ‘explosão’
Os gases formados no processo de putrefação se acumulavam no corpo de Pio XII, inchando a olhos vistos o tórax de Pacelli.
“O enorme esforço feito pelos nobres guardas para resistir ao cheiro nauseante que emanava do cadáver do Papa é visível nos rostos dos nobres guardas”, conta Margheriti. “A partir de agora, os turnos alternados de guarda serão cada vez mais frequentes, para evitar a exposição excessiva aos gases mefíticos, e porque muitos nobres guardas desmaiam regularmente, exaustos por aquele cheiro de morte.”
Durante o traslado do corpo até a Basílica de São Pedro, os ocupantes do carro funerário ouvem um altíssimo barulho de explosão vindo do caixão. “O corpo desajeitadamente embalsamado literalmente se despedaçou”, diz Margheriti.
Operação emergencial
Já na capital, sob um cheiro insuportável, profissionais tiveram de improvisar um reparo no corpo às pressas. O caixão teve de ser coberto até a chegada ao Vaticano, enquanto uma multidão de romanos se aglomerava para homenagear o amado papa Pacelli. Ao chegar a São Pedro, Margheriti descreve um cenário de horror:
“Ele havia ficado enegrecido, seu septo nasal havia caído e, à medida que seus músculos faciais se retraíam, seus dentes se destacavam em ‘uma risada de gelar o sangue’.”
O cortejo chegou ao Vaticano à noite. Antes do primeiro dia de exibição do corpo, colocado em um altíssimo catafalco no centro da basílica, os restos de Pio XII foram descidos, desnudados e alvo de uma enorme operação de emergência de tanatopraxistas. Ele passou por um novo processo de embalsamamento, e uma máscara de cera e látex foi aplicada em sua face.
O aspecto inchado do cadáver seria visível, no entanto, até o nono dia dos ritos ,fúnebres, quando Pio XII foi finalmente sepultado.
Galeazzi-Lisi, o médico, passou para a história como um profissional presunçoso e incompetente. Embora não o responsabilizassem oficialmente pela deterioração do corpo, o consideraram culpado pelo vazamento das fotos e o expulsaram do Vaticano.
Nunca mais utilizaram seu método em outro pontífice. Ele morreu em 1968, a tempo de ver ainda o funeral de João XXIII, um trabalho considerado impecável pelos pares:
“O embalsamamento patenteado pelo competente prof. Gennaro Goglia, que incluiu, entre outras coisas, injetar muitos litros de líquido conservante à base de formaldeído através das artérias principais, teve excelentes resultados. Preservaram perfeitamente o corpo durante toda a exposição pública”, registrou Margheriti.
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