
Uma lenda que começou a circular há quase 70 anos entre moradores da Ilha Grande, em Angra dos Reis, segue viva até hoje. Diz o boato que um avião obrigado a fazer um pouso de emergência na Praia do Sul, nos idos de 1958, estava carregado de barras de ouro. De acordo com a narrativa, essa foi a razão pela qual o governo, na época, isolou o local, impedindo a aproximação dos habitantes.
A foto acima teve registro um dia após a aterrissagem forçada. Uma das relíquias da exposição “Um século de histórias“, que celebra o centenário do Jornal O GLOBO, na Casa Roberto Marinho, no Cosme Velho, Zona Sul do Rio, a imagem mostra o que havia sobrado da “avião do ouro”, consumido pelas chamas depois do pouso emergencial. Mas, afinal, como o avião foi parar lá e o que havia ali dentro?
O ínicio
Após uma pesquisa no site do Acervo O GLOBO, a gente encontrou todas as reportagens sobre o caso. No dia 10 de junho de 1958, uma terça-feira, às 10h50, o quadrimotor Douglas DC-6 da Aeronlineas Argentinas levantou voo do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio, com destino a Buenos Aires, levando 16 passageiros e seis tripulantes. Cerca de uma hora depois, começaram os problemas.
A aeronave sobrevoava Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo, a 4800 metros de altitude, quando um de seus motores apresentou rotação muito acima do normal, obrigando o comandante Rogelio Merelle a desligá-lo. Apesar do pânico instalado entre os passageiros, o piloto manteve a calma e começou a dar meia volta, apontando o nariz do avião na direção do Rio, sabendo que tinha que aterrissar.
Seu objetivo era pousar na na Base Aérea de Santa Cruz, na Zona Oeste da capital fluminense, a pista mais próxima. Enviando mensagens desesperadas de SOS e informando sobre a situação em que se encontrava, Merele já vislumbrava o lençol de areia da Restinga de Marambaia quando, cinco minutos depois de fazer o retorno, um segundo motor do avião entrou em pane.
Redução da velocidade
Obrigado a reduzir a velocidade para estabilizar a aeronave, e perdendo altitude, o piloto percebeu que não conseguiria levar o avião de 42 toneladas até Santa Cruz. O jeito foi recolher o trem de pouso e procurar o local adequado para uma aterrissagem de emergência na Ilha Grande, o que não seria nada fácil. A ilha tem topografia acidentada, cheia de morros e praias curtas, com faixas de areia estreitas.
Merele confiou no seu treinamento. Ele avistou uma faixa de areia lá embaixo e começou a descer. O piloto reduziu a velocidade para 180km/h, manobrando astutamente para pousar nas águas rasas perto da areia. O avião sofreu um duro solavanco, depois outro mais forte e, finalmente, um terceiro e último tranco, que fez a aeronave parar na pequena Praia do Sul, perto da Praia do Aventureiro.
Ninguém ficou ferido, mas não houve tempo para euforia. “A primeira barrigada estourou os radiadores de óleo e começou um incêndio”, relatou o comandante de 36 anos, pai de três filhas, em entrevista ao GLOBO no Hotel Regente, em Copacabana, no Rio, um dia após o episódio. “O comissário de bordo abriu a porta, e todos saíram. Eu, por minha parte, saí pela janela de emergência do lado esquerdo”.

As 22 pessoas a bordo se acomodaram na praia, assistindo às chamas que consumiam o avião. Ainda tomados pelo pânico, muitos choravam. Tripulantes tentaram manter a calma e escreveram pedidos de socorro em letras grandes na areia. Mas não demorou muito até uma aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) passar e jogar do alto uma mensagem: “Aguardem socorros, providências tomadas”.
Sobreviventes
Os sobreviventes foram recolhidos de helicóptero e levados até a Base Aérea de Santa Cruz, de onde um avião da FAB os transportou até o Aeroporto Santos Dummont, no Rio. No terminal, a passageira Maria Bernardes falou ao GLOBO sobre o que sentira durante o assustador episódio. “Foram minutos terríveis. Realmente pensei que não chegaríamos com vida aqui embaixo”, desabafou ela.
A passageira Nelly Pragana, que viera de Lisboa com destino a Buenos Aires, descreveu seu desespero nos instantes que antecederam o pouso de emergência. “Fiquei lívida de medo, principalmente quando o comissário veio nos acalmar, dizendo que não era nada”, disse ela. “Rezei muito até sentir o choque. Felizmente, tudo correu bem. Perdi toda minha bagagem, devorada pelas chamas. Mas estou viva”.
O jogador de futebol Juan Hohberg, argentino naturalizado uruguaio, que atuara na Copa do Mundo de 1954 pela Celeste, também estava a bordo. “Senti muito medo. Não tanto por mim, mas por minha mulher e meu filho, que estavam comigo”, disse o centroavante. “Não fosse a perícia do comandante, estaríamos todos nós mortos. Graças a ele, consegui driblar a morte e fiz o maior gol da minha vida”.

Avião ainda em chamas
Pescadores chegaram à praia quando o avião ainda estava em chamas. Eles estavam chocados com a habilidade do piloto, que se aproximou da faixa de areia sem bater no morro no canto da praia. “Não sei como conseguiu se livrar do morro e da pedreira. Passado o pânico, perguntamos a ele. Não entendemos nada do que disse, mas, pelos gestos, só vejo uma explicação: muita calma, muita segurança”.
“Espero nunca mais me encontrar em situação parecida, pois é bem possível que meu anjo da guarda não repita a sua façanha”, disse o piloto Merelle, com bom-humor exemplar
Isótopos radioativos
Nesse meio tempo, dias depois do acidente, um jornal informou que o Douglas DC-6 trazia de Londres, no Reino Unido, dois isótopos radioativos para uso medicinal e que toda a área do acidente teria de ser isolada devido ao risco de contaminação. O material, entretanto, foi recuperado com êxito por especialistas da FAB, e exames posteriores na Praia do Sul mostraram que não havia nenhum perigo à saúde das pessoas.
A área havia sido interditada para impedir a aproximação de curiosos, mas, logo, começou a circular a versão de o avião estava cheio de barras de ouro desviadas pelo governo argentino. Tudo boato.
O episódio teve destaque na imprensa, mas, 19 dias depois, o Brasil conquistaria sua primeira Copa do Mundo, na Suécia. A proeza do comandante Merelle cairia no esquecimento. Com o tempo, o mar e a areia cobriram os restos carbonizados da aeronave. Hoje, quem visita a Praia do Sul se encanta com a beleza do local e respira tranquilidade, sem ver vestígios do pouso de emergência do inverno de 1958.
